A cada novo ano, a
cada novo projeto, Nossa Escola renova a leitura de sua caminhada a fim de
seguir com a promoção do ato criativo e com o cultivo de saberes tradicionais. Esse
nosso compromisso é materializado no projeto de trabalho do ano, nas
intervenções pedagógicas de cada dia.
?Ao final do
último ano letivo, sentimos a necessidade de ampliar o estudo que fizemos em 2008,
sobre a importância da palavra, e vamos a ele mantendo o Saber, evidentemente,
como primeiro foco de nosso fazer de escola e apontando o Ser como fundamento
de todo o Saber; portanto, dizemos que a formação do Ser caminha ao lado. Essa
compreensão continua fazendo-nos apostar numa interação com os alunos de modo
mais afetivo, o que não exclui (como algum olhar superficial pode crer) os
caminhos de construção da disciplina, necessária para que os sujeitos se
coloquem no mundo com autoria e com uma autonomia decorrente de adequação de
condutas, no processo de construção das coisas.
Que tempo é esse, o
das realizações? Esse tempo é a Idade Antiga, e é também a Idade Medieval, bem
como a Idade Moderna e a Idade Contemporânea. É o tempo do ser no mundo. Cá
onde estamos, na Época da Técnica, na Idade da Ciência, na Era do Consumo, no
tempo em que tudo parece poder acontecer com um toque digital, o espírito
criador e definidor de identidade que mora nas línguas que falamos parece
desfavorecido. Com o transplante de palavras técnicas, de termos científicos, de
siglas publicitárias das línguas exportadoras de objetos de consumo, de
serviços e invenções para as línguas importadoras, instala-se o processo de
corrupção progressiva dos discursos. Assim, percepções1 decorrentes
das experiências próprias de uma sociedade têm sua construção interrompida, e a
vitalidade no falar e no dizer de uma comunidade pode esvair-se. Resistindo a
esse espetáculo, estamos criando, na escola, um contexto que contribui com a
vitalidade das palavras, aprofundando-nos, se possível, até onde ela toca as
coisas, objetos de estudo das diferentes disciplinas.
?Vejamos, nesta
imagem, a ideia de que a palavra contém o mundo e, mais que isso, produz mundos
e os conecta: “Quando, de manhã, um físico sai de casa para pesquisar, no
laboratório, o Efeito Compton e sente nos olhos os raios de sol, a luz não lhe
fala, em primeiro lugar, como fenômeno de uma mecânica quântica ondulatória. A
luz fala primeiro como fenômeno de um mundo carregado de sentidos para o homem;
fala como integrante de um cosmos, na acepção grega da palavra (...). A luz
fala, sobretudo, de um mundo em que esse homem nasce e cresce, ama e odeia,
vive e morre a todo instante. Sem esse mundo originário, o mundo físico, não
poderiam, homens e mulheres, empreender suas pesquisas, pois não lhes seria
possível nem mesmo existir.” (Leão, em Heidegger, 1988, p. 19)
Sabe por que nós
podemos usar a mesma palavra para nos referir tanto a um fenômeno externo – a
luz do Sol – quanto a um fenômeno interno – a luz da razão? Porque nem o Sol
está somente fora de nós, nem a razão está exclusivamente dentro de nós; porque
sempre e necessariamente realizamos nossa existência na estrutura ser-no-mundo.
E o que movimenta
essa estrutura e a amplia? A palavra. Nossa função de professores e professoras
é a produção de saber na construção de sentidos, de significados. Por isso,
provocamos no outro o pensar. Pensar o sentido do ser, que é escutar a
realidade nos vórtices das realizações, deixando-se dizer para si mesmo o que é
digno de ser pensado como o outro. O que nos possibilita formar esse sujeito
que pensa? O que nos possibilita buscar desenvolver no outro o ato de pensar? O
que nos possibilita buscar o conteúdo em que o sujeito pensa (o objeto
pensado), que não é a coisa em si, mas a forma como o processo de pensar a
reveste? O que nos possibilita alcançar esse contexto subjetivo, capaz de
reinaugurar o mundo, capaz de criar outros mundos? O que nos possibilita tudo
isso é algo que temos sob nossa responsabilidade, instrumento quase exclusivo
de nosso trabalho: as palavras.
Para este caminho com as palavras, temos
contado, há muito, com a companhia de Nietzsche e de Foucault; trouxemos Bauman
para os mais recentes projetos; e agora recebemos Larrosa2: “(...)
As palavras produzem sentido, criam realidades e, às vezes, funcionam como
potentes mecanismos de subjetivação. Eu creio no poder das palavras, na força
das palavras, creio que fazemos coisas com as palavras e, também, que as
palavras fazem coisas conosco. As palavras determinam nosso pensamento porque
não pensamos com pensamentos, mas com palavras, não pensamos a partir de uma
suposta genialidade ou inteligência, mas a partir de nossas palavras. E pensar
não é somente “raciocinar” ou “calcular” ou “argumentar”, como nos tem sido
ensinado algumas vezes, mas é sobretudo dar sentido ao que somos e ao que nos
acontece. E isto, o sentido ou o sem-sentido, é algo que tem a ver com as
palavras. E, portanto, também tem a ver com as palavras o modo como nos
colocamos diante de nós mesmos, diante dos outros e diante do mundo em que
vivemos. E o modo como agimos em relação a tudo isso. (...) Nomear o que
fazemos, em educação ou em qualquer outro lugar, como técnica aplicada, como
práxis reflexiva ou como experiência dotada de sentido, não é somente uma
questão terminológica. As palavras com que nomeamos o que somos, o que fazemos,
o que pensamos, o que percebemos ou o que sentimos são mais do que simplesmente
palavras. E, por isso, as lutas pelas palavras, pelo significado e pelo
controle das palavras, pela imposição de certas palavras e pelo silenciamento
ou desativação de outras palavras são lutas em que se joga algo mais do que
simplesmente palavras, algo mais que somente palavras (...)”.
Talvez porque as
palavras tenham, inegavelmente, o poder de produzir mundos elas cumpram com
aquela mui difícil função, que é a de ser encantadora.
(1) Ampliemos nossa leitura sobre o
conceito de percepção discutindo aspectos filosóficos, psicológicos, semióticos
e de comportamento do consumidor. Este artigo faz diferentes abordagens e traz
referências bibliográficas.
(2)
Notas sobre a experiência e o saber de experiência
Jorge Larrosa Bondía - Universidade de
Barcelona, Espanha