Na edição anterior, em Disciplina e Coragem, vimos categorias que envolvem as relações educacionais: olhar-e-confiança; "com-sangue-a-letra-entra e seu pseudo-avesso: "aprendizado-natural", "afeto-e-rigor", "democracia e autoritarismo", "autonomia-e-disciplina"; falamos de massificação, amiga da intolerância à diversidade e, por fim, vimos as categorias desafio e sanções que têm em comum somente a possibilidade de reparação de algo, o que não justifica confundi-las tanto, na prática. Enfatizamos essas categorias porque não há como pensar qualquer relação destituindo-a de seu caráter civilizatório, ou seja, pedagógico. Não há como analisar os modos de produzir coisas sem pensar as relações humanas. Para o bem ou para o mal, os valores, assim como os afetos, são delineadores das relações, e estas, dos homens. Sem homem não há relação. É nela que o homem se constitui com o outro e para algo.
Nesse contexto, pedagogia é sempre arte porque trabalha a estética - no seu sentido primeiro: forma, aparência - do ser humano, "um artista consumado", "de si mesmo. O artista ou a arte, ou seja, o homem é a preconização de todas as outras artes". As relações, no fito das positividades, são, então, partes integrantes das metodologias que por, sua vez, são caminhos. No final deles, está a construção de algo, e às vezes esse algo é a própria relação. Denominando caminhos as metodologias, temos, para ir em frente, que definir princípios, objetivos, técnicas e instrumentos vários. É sempre relevante lembrar que tais técnicas abarcam o homem e seu modo de ser. Não há como vê-las como algo mecânico e frio, mas incorporadas de todos os afetos que transitam nas relações em função do fazer, além de torná-las plásticas, para abarcar não só os afetos, mas os atos criativos. Tampouco iremos contrapor a metodologia citada a uma lógica científica, mas reestruturá-la em outra, igualmente sistematizada, que transita entre as ciências naturais, filosofia e matemática.
Entre as categorias em pauta nas discussões escolares, temos "olhar versus confiança". O "versus" emerge de um discurso ingênuo. Os jovens dizem: mãe, pai, professora, não precisam olhar: eu fiz, eu faço, eu me comporto - e afinal se ressentem - vocês não confiam em mim? Os adultos, sob o efeito do psicologismo, angustiam-se e desestruturam-se... Ou será que simplesmente se acomodam com esse argumento, que não resiste à mínima reflexão? Na realidade, a confiança tão gratuita é frágil na prática. Ela só pode ser construída na relação em que prevalece a franqueza, a abertura e, claro, o olhar de perto. Todas as relações só podem ser delineadas, portanto, pelo olhar, na construção de valores mútuos, entre os iguais-iguais ou iguais-no-devir. Há relação efetiva quando os envolvidos estão inteiramente comprometidos com projetos e com o outro.
Os sonhos são sempre em comum. Mas, nessa discussão de quem olha e de quem é olhado, não podemos esquecer que a idade, assim como o saber que as experiências de vida já possibilitaram, define os papéis. Sempre haverá mestre e aprendiz. Se quisermos ser generosos, não devemos turbar-nos na pieguice do "democratismo", mas, sim, prever e possibilitar um projeto relacional com transição de lugares. De preferência, que a façamos com respeito, o que garante a integridade dos envolvidos. Da parte do adulto, é ético saber ouvir, cultivar a dificílima paciência ao conduzir o mais jovem, ao explicar e até ao impor. Portanto, não há confiança sem o olhar minucioso que não se desvia dos filhos ou dos alunos, em nome de falsa-confiança. Isso até que virem homens. Olhar é conferir amiúde, é ensinar a conferir se tudo vem se desenvolvendo de acordo com os compromissos a favor dos objetivos primeiros. Na Escola, o que se projeta no alto é a Produção de Saber, de preferência, enquanto se conquista a auto-soberania.
Em meio às confusões que se faz com tais categorias - olhar e confiança - não é demais lembrar que existe uma enorme diferença entre receita de bolo e projetos de vida. A identificação dos dois só é possível quando não nos damos conta da dinâmica do existir. O raciocínio torna-se, todavia, mais cristalizado quando somos insensíveis às transformações de valores que se constroem e hierarquizam-se nas relações. Todos os projetos, em vários de seus momentos, adaptam-se às realidades diversas e, principalmente, ao que nos é dado pelo mundo. Somos mais sensíveis às aberturas de possibilidades quando nos damos conta de que é próprio de cada homem criar sentidos mais singulares às suas existências. Não está em jogo somente o que nos é dado, mas o que fazemos com o que nos é dado (Sartre). Por mais cristãos que sejamos e, em seu nome, passivos, a própria bíblia expõe nossa "condenação" à liberdade quando declara "o homem criado à imagem e semelhança de Deus", ou seja, à semelhança d'Aquele cujo maior atributo é ser "O Criador".
Se somos livres, optamos, e o não criar é uma opção. Quem aposta nisso, com sucesso, são as instituições que vivem da massa e do consumismo. Não é fácil se perder na mediocridade "tipo assim", "noutro viés"? Mas finalmente se paga por isso com o vazio. Sem projetos de vida mais próprios, não há como se estruturar enquanto ser, e, tampouco, reconhecer-se como tal. A auto-soberania se faz sob o olhar civilizatório, pedagógico..
Por isso, não há dicotomia entre olhar e confiança. O não-olhar só se apóia na ingenuidade, na preguiça e muitas vezes nos jogos manipuladores, que tanto podem ser do educando como do educador. Se o educador não olha, instituições legítimas (mas para outros fins) ocupam esse lugar. Se permitirmos, não resolvem depois os enfadonhos lamentos tão comuns entre educadores.
Anna M.Fidellis Mariconi